Nos tempos atuais, é raro nos depararmos com a praia ideal para um Surfista Raiz viver. A grande maioria das praias que apresentam uma boa qualidade já são particulares ou estão sempre cheias, ou seja, raramente você irá surfar sozinho, quem dirá morar lá; muitas estão poluídas, possuem o acesso complicado, por vezes, é muito caro. Se me permitem, usarei de uma citação para descrever esse encontro:
Lugares como esses davam a você um pouco de esperança, quando não havia nenhuma ao redor.... C. Bukowski.
O encontro foi de certa forma acidental, mas algo ali me chamou a atenção logo de cara, areias brancas, água cristalina e parecia ter boas ondas... Na verdade, no início, sabia muito pouco sobre ela, não era como os outros picos que você encontra na internet, que se descobre tudo, mesmo antes de se chegar lá... Essa praia era diferente.
Não lembro direito a última vez que me encantei tanto com uma praia, parecia mágica, enigmática, encantadora, perigosa e bela, tudo ao mesmo tempo. Fazia anos que não saia da comodidade da minha praia para ir em busca de novas. Geralmente, as ondas vinham até mim. Mas fui, o caminho foi longo, saberia que a praia estaria lá a minha espera. Mas, logo de início, pairava a incerteza, horário, local, sabia a direção, mas não a posição exata do pico. O estado de ansiedade só aumentava, as famosas borboletas na barriga, já davam sinal de vida novamente.
Quando cheguei, a primeira impressão não foi a esperada (talvez pela expectativa), foi estranho e sinceramente não sei explicar o que senti. Talvez fosse meu inconsciente falando: essa praia é perigosa! Mas não entendi o recado e a encarei, sem medo.
É assim que se consegue as coisas as coisas boas da vida!
Logo que percorri suas areias, peguei as primeiras ondas e a conheci um pouco melhor, sabia que estava na praia dos meus sonhos. Foi paixão a primeira vista. Era a praia que queria morar, casar, criar os filhos e brincar com cachorro; sabia que ali, encontraria tudo o que precisaria para viver feliz até o fim dos meus dias... Meu desejo era o viver e morrer ali...
As ondas eram as melhores que já tinha pego, perfeitas, independente das condições. Aprendi a curtir ficar na areia, observando as ondas e a paisagem, coisa a qual nunca me interessei em fazer. Lá eu conseguia contemplar tudo, observava a beleza em todos os seus detalhes e amava cada um deles, passaria horas descrevendo cada um. Mesmo nos dias nublados e com tempestades, eu sabia, essa era a praia da minha vida! Me encontrava feliz surfando novamente... Como diria a Ana Suy:
"A gente não ama quando encontra alguém que cabe no nosso ideal, mas quando encontra alguém que nos leva a perdê-lo".
Me sentia seguro em qualquer condição: com ondas pequenas, grandes e até nos dias de ressaca, no frio ou no calor. Mas tem uma coisa importante que sempre é bom lembrar sobre as ondas, quanto melhor as condições, maior é a dificuldade, tanto para se chegar ao outside, para se surfar, como para aguentar os caldos...
A parte boa de ser surfista, é que aprendemos que por melhor que sejamos, os caldos irão existir, não importa o quão bom você seja, você irá levar na cabeça e, quanto melhor nos tornamos, maiores também serão os caldos. É a regra que não pode ser burlada no surf e na vida. Alguns caldos são muito fortes, é como se fossemos um botão solto dentro de uma máquina de lavar roupa, ligada ao máximo. Ficamos sem ar, quase morremos ali. Quando finalmente emergimos para a superfície, pensamos em um reflexo de sobrevivência: quero sair daqui. Pela falta de oxigenação do cérebro, nossa mente fica confusa e nossas atitudes também... Esse é o preço que se paga, independente da praia e das ondas que se esteja surfando...
Para se viver na praia dos sonhos é preciso estar preparado, as vezes é melhor nem entrar no mar dependendo das condições. Mas eu estava ali, feliz... curtindo, finalmente estava fazendo planos de futuro, onde iriamos construir a casa, como ela seria, o que teria e, principalmente, os meios para se construir tudo isso. Essa, obviamente é uma coisa a qual, não se decide sozinho, e a praia, parecia colaborar muito com esses planos. Existia uma certa harmonia e reciprocidade quanto a isso.
Estava criando coragem para sair da comodidade da minha praia deserta e sem ondas, para construir uma nova vida, na praia que se materializou e ampliou os meus sonhos.
Com o passar do tempo, comecei a me sentir como um posseiro daquela praia. Já não me sentia mais tão a vontade de ir até lá, o tempo estava feio, o clima frio, e os caldos, cada vez mais intensos, com dias bons, claro. Parecia que a praia não sentia mais aquela alegria em me ver do início. A areia, já não mais subia em meu corpo quando eu chegava, como quando a mulher, ao lhe ver, sobe em seu colo num pulo, fica abraçada por instantes, instantes que recarregam toda a nossa energia... mas o mar ali, já não brilhava mais para mim quando eu chegava. Pelo menos era o que eu sentia.
Isso gera uma insegurança enorme e acaba interferindo na performance nas ondas, e rompe, de certa forma, a sintonia entre surfista e praia. Da mesma forma quando olhamos para um mar sem ondas, não conseguimos imaginar ele com ondas; assim são nossas emoções - quando somos invadidos por ela, não conseguimos ver outra coisa, seja ela qual for. Mas uma hora passa.
A vida é feito de ciclos, há tempestades e existem dias ensolarados.
Posso dizer que foram dias incríveis lá. Mas um dia o mar ficou revolto e surgiu um furacão escala 9 do nada, talvez fosse influência da Lua, somada a outras condições climáticas naturais que geraram esse fenômeno. Não sei, não o percebi se formando e não deu tempo de se proteger.
Mas ele chegou.
Chegou e me expulsou da praia. Nada podemos contra as forças da natureza e isto é frustrante. Nos gera a espécie de uma ressaca, que nem a mais forte das bebidas destiladas podem gerar. Consome todo nosso corpo, afeta funções importantes para se manter a harmonia do surfista com a praia. E neste momento, meu caro, não há muito o que se fazer, nos debatemos em vão. É que nem em um caldo de onda grande: vc se sente sufocado, quer sair dali mas não consegue, quanto mais se movimenta, mais pro fundo você vai. Não tem como controlar, por mais força que façamos, parece que iremos morrer ali, de fato, isso ocorre algumas vezes. Sinto que uma parte minha morreu ali, conforme meu desejo anterior, a que sobrou, está definhando aos poucos. Neste momento, negócio era relaxar e esperar passar. Infelizmente, não consegui manter toda a calma necessária, talvez por não estar mais acostumado com esses caldos.
A recuperação vai demorar, há danos físicos e mentais, no Surfista e na praia; agora é hora de contar os danos, reconstruir os materiais danificados e jogar fora todo o material perdido para sempre. Os mais difíceis com certeza serão os sonhos. Esses, por não serem materiais, por não estarem sob essa influência, demoram mais para serem reconstruídos, por vezes, ficam "Recalcados" e em alguns momentos ressurgirão "Sublimados" - para nos recordar do ocorrido.
O furacão passou. A devastação está sob meus olhos - o cenário é de Caos, de pós Guerra. Não há nada o que se fazer. Não adianta culpar nem implorar para Deus, Ele não pode e não irá fazer nada... Pedir para o Universo também não adiantará. Eles se importam tanto com você, quanto você se importa com as bactérias que habitam seus pés.
Teremos que lidar com a realidade! Nua, crua e angustiante.
Tentei, em um impulso procurar novos picos para surfar, me distrair, tentar esquecer. Mas não consegui nem me mover, o impacto do furacão e a corrente fria que o sucedeu, congelou meu ser inteiro.
Diante de tanta devastação, que nos arranca toda e qualquer esperança. Só nos resta nos reconstruirmos. Eu e a praia. Cada um em seu tempo. Fico feliz em ter preservado-a o máximo que pude, cuidei com todo o amor e carinho dela, ajudei a construir uma tenda para os dias de muito sol, alimentava ela com amor, cuidava e respeitava as áreas degradas, estava lá, com a melhor das boas intenções e mantive sempre a lucidez para não fazer besteiras. Só tirei fotos e trouxe boas lembranças na memória.
Infelizmente, não poderei mais frequentar essa praia. Ela não existe mais.
A esperança de poder reconstruí-la, irá embora aos poucos.
A vida segue, quem sabe eu encontre uma nova praia para morar. Talvez a praia receba um novo morador que cuide dela, com todo o carinho e amor que ela necessita. Talvez seja visitada por breves instantes, por algum outro surfista que não se demore por lá, ou algum espirito de porco que só a polua. Assim como acontecia antes de eu chegar lá. Também não sei o que acontecerá comigo... Talvez o mesmo, nunca se sabe!
O que nos resta então?
Ficam as lembranças dos bons momentos... Lembranças que nunca serão esquecidas, por conta dos sonhos, por conta do maldito "Significante Lacaneano".
O material, esquecemos e recuperamos facilmente.
Mas os sonhos não, eles não existem na realidade para serem destruídos, queimados ou jogados fora!
E essa é a pior e a melhor parte.
O que, de certa forma começou Bukowski terminará, infelizmente, com o mesmo:
Para você, eu era um capitulo. Para mim, você era... o Livro
Ainda terei que buscar o que sobrou lá, mas por conta do furacão, não poderei chegar perto da praia. Não poderei olhar para ela pela última vez, na esperança, ainda que remota, de que ainda exista um brilho mágico em suas águas e que toda aquela magia retorne como um encanto.
Mas, no fundo eu sei:
São só esperanças de um surfista romântico e apaixonado.
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